João Mário Caldeira




 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 





A tentação dentro de um tacho


Um "caldo de peixe" do rio ou umas "sopas de peixe" são sinónimos em termos culinários. O nome varia de zona para zona na comprida bacia do Guadiana. Entretanto "caldeirada", ainda que parecida no sabor e confeccionada com o mesmo peixe, é outra coisa. Em matéria de cozinha é bom respeitar as diferenças, as quais, para qualquer gastrónomo, são de importância relevante. Deixemos, por ora, a "caldeirada" (prato mais dado a cozinha debaixo de telha) e vejamos como se prepara um "caldo de peixe" no ambiente natural, ou seja nas margens do rio, em dia quente de começos de verão, sob a sombra providencial de uma azinheira.

Para o "caldo" podem entrar as variedades mais comuns do peixe do Guadiana. A saber: barbos, bogas e bordalos. Destes, há sempre quem diga que uns são melhores que os outros. O costume! Tudo conversas para beber mais um copo, demorando o gozo de um prato especial da elaborada comida alentejana!

Se o barbo grande, com peso aproximado ao quilo, parece merecer mais consenso no ciclo dos apreciadores, há muitos (entre os quais alguns dos que habitualmente pescam no rio) que dão preferência às outras duas espécies mais pequenas: as bogas e bordalos. Gostos não se discutem!

O peixe é escamado meio vivo, logo que retirado da água. Se a escamação obedece a critérios de muito cuidado porque a escama dos barbos grandes é rija como aço, a retirada das vísceras e barbatanas também merece preceito especial.
Quanto às vísceras há que extrair tudo, excepto as ovas das fêmeas, parte muito apreciada pela generalidade dos entendidos. As guelras são sempre arrancadas porque "amargam".

No que toca às barbatanas, há quem defenda que sim e quem defenda que não se devem tirar. Mais comum é deixá-las. Tirá-las rouba rijeza aos bichos e peixe mole não presta, defendem (com alguma razão) os mais versados no assunto.

Segue-se um pormenor importante no amanho dos apreciados ciprinídeos. "Retalhar" os peixes depois de escamados é fazer-lhes cortes transversais a todo o comprido do corpo, num lado e noutro, quanto mais aproximados melhor. Os cortes (que devem levar o fio da navalha até à espinha principal) não se destinam só a uma cozedura mais uniforme ou a uma melhor exumação de sabores, mas fundamentalmente servem para "não se dar pelas espinhas", que nestas espécies são em número verdadeiramente impressionante.

Amanhados os bichos, arrepiam-se levemente com sal e ficam a repousar, resguardados das moscas, bicho malino que pressente o cheiro do pescado a uma légua de distância e é mais basto que balanço em seara logo que aperta o calor!...

Num lume de lenha de azinho aceso entre três pedras, põe-se o tacho de ferro de duas asas onde previamente se migou alho, cebola, tomate, hortelã da ribeira e poejos e se deitou um punhadinho de sal, pimenta preta moída, uma pitada de colorau e azeite quanto baste. Se o houver, deve juntar-se aos temperos o cebolinho da ribeira, planta exótica que para se defender do dente do gado cresce em pequenas ilhotas no meio dos pegos e que é condimento relevante para os mais fundamentalistas. Se estiver na sazão, fica bem um cogumelo, cortado fino, que acrescenta nobreza ao cozinhado.

Finda a operação de refogar no azeite, a coberto do sal, as ervas, os legumes e as especiarias, que deixam no ar eflúvios raros, acrescenta-se água e deixa-se ferver em lume brando tapando o tacho para que nenhuma sapidez se perca. A cozinha requer muitos cuidados e vagar, mormente a que envolve primores da natureza de que é mister tirar partido. A expectativa cresce nos que esperam e o apetite aumenta com o ar do campo. Morrem os olhos no tacho enquanto se saliva o tempo. Bem podem os pássaros cantar!...

Logo que por entre os olhos do azeite e emaranhado dos temperos, rompe a fervura em borbotões, deitam-se os peixes, partidos aos bocados se são grandes, cozendo breves minutos, o suficiente para se impregnarem do favor dos condimentos sem, contudo, se desfazerem.

Entretanto, para um alguidar de barro, fatiam-se sopas de pão duro que hão-de ser o esteio que sustentará o cozinhado. Sem ele nada se faz no Alentejo. Por isso, o pão de trigo tem que ter a consistência e a qualidade a que a necessidade obriga. Com o seu sabor, na sua contida permeabilidade se concentram todos os restantes sabores. Ele dá verdadeiramente corpo à refeição.

Sobre as suas fatias se deita no alguidar o caldo e toda a temperagem, excepto os peixes que ficam no mesmo recipiente para não arrefecer nem levar tombos desnecessários que lhe quebrem a inteireza.

O "caldo", assim dito sem outros apelidos, está pronto. Cheguem-se à mesa os convidados, de prato em riste e brilho nos olhos.

Os peixes, que se comem a acompanhar as sopas, costumam polvilhar-se ainda com sal grosso, no próprio momento de se lhes meter o dente.

Ficam bem azeitonas de conserva, verdeais, no compasso da degustação. Dado o calor ambiental aconselha-se um vinho branco fresco, das Pias, com um frutado que não ofenda os padrões prescritos nas adegas da região.

Após tão campestre acepipe, torna-se indispensável a sesta enquanto se faz o quimo. O Guadiana rejubilará ao ver cumprir-se a tradição.

Aos presentes desejo que possam experimentar o gozo destes prazeres, primavera adiantada, nas margens do grande rio do Sul desfrutando a beleza do local e a tentação de prato tão raro. Se não puderem, que pelo menos o imaginem.


fonte:
João Mário Caldeira
Moura, 13/05/05



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