A tentação
dentro de um tacho
Um "caldo de peixe" do rio ou umas "sopas de peixe" são sinónimos em
termos culinários. O nome varia de zona para zona na comprida bacia do
Guadiana. Entretanto "caldeirada", ainda que parecida no sabor e
confeccionada com o mesmo peixe, é outra coisa. Em matéria de cozinha
é bom respeitar as diferenças, as quais, para qualquer gastrónomo, são
de importância relevante. Deixemos, por ora, a "caldeirada" (prato
mais dado a cozinha debaixo de telha) e vejamos como se prepara um
"caldo de peixe" no ambiente natural, ou seja nas margens do rio, em
dia quente de começos de verão, sob a sombra providencial de uma
azinheira.
Para o "caldo" podem entrar as variedades mais comuns do peixe do
Guadiana. A saber: barbos, bogas e bordalos. Destes, há sempre quem
diga que uns são melhores que os outros. O costume! Tudo conversas
para beber mais um copo, demorando o gozo de um prato especial da
elaborada comida alentejana!
Se o barbo grande, com peso aproximado ao quilo, parece merecer mais
consenso no ciclo dos apreciadores, há muitos (entre os quais alguns
dos que habitualmente pescam no rio) que dão preferência às outras
duas espécies mais pequenas: as bogas e bordalos. Gostos não se
discutem!
O peixe é escamado meio vivo, logo que retirado da água. Se a
escamação obedece a critérios de muito cuidado porque a escama dos
barbos grandes é rija como aço, a retirada das vísceras e barbatanas
também merece preceito especial.
Quanto às vísceras há que extrair tudo, excepto as ovas das fêmeas,
parte muito apreciada pela generalidade dos entendidos. As guelras são
sempre arrancadas porque "amargam".
No que toca às barbatanas, há quem defenda que sim e quem defenda que
não se devem tirar. Mais comum é deixá-las. Tirá-las rouba rijeza aos
bichos e peixe mole não presta, defendem (com alguma razão) os mais
versados no assunto.
Segue-se um pormenor importante no amanho dos apreciados ciprinídeos.
"Retalhar" os peixes depois de escamados é fazer-lhes cortes
transversais a todo o comprido do corpo, num lado e noutro, quanto
mais aproximados melhor. Os cortes (que devem levar o fio da navalha
até à espinha principal) não se destinam só a uma cozedura mais
uniforme ou a uma melhor exumação de sabores, mas fundamentalmente
servem para "não se dar pelas espinhas", que nestas espécies são em
número verdadeiramente impressionante.
Amanhados os bichos, arrepiam-se levemente com sal e ficam a repousar,
resguardados das moscas, bicho malino que pressente o cheiro do
pescado a uma légua de distância e é mais basto que balanço em seara
logo que aperta o calor!...
Num lume de lenha de azinho aceso entre três pedras, põe-se o tacho de
ferro de duas asas onde previamente se migou alho, cebola, tomate,
hortelã da ribeira e poejos e se deitou um punhadinho de sal, pimenta
preta moída, uma pitada de colorau e azeite quanto baste. Se o houver,
deve juntar-se aos temperos o cebolinho da ribeira, planta exótica que
para se defender do dente do gado cresce em pequenas ilhotas no meio
dos pegos e que é condimento relevante para os mais fundamentalistas.
Se estiver na sazão, fica bem um cogumelo, cortado fino, que
acrescenta nobreza ao cozinhado.
Finda a operação de refogar no azeite, a coberto do sal, as ervas, os
legumes e as especiarias, que deixam no ar eflúvios raros,
acrescenta-se água e deixa-se ferver em lume brando tapando o tacho
para que nenhuma sapidez se perca. A cozinha requer muitos cuidados e
vagar, mormente a que envolve primores da natureza de que é mister
tirar partido. A expectativa cresce nos que esperam e o apetite
aumenta com o ar do campo. Morrem os olhos no tacho enquanto se saliva
o tempo. Bem podem os pássaros cantar!...
Logo que por entre os olhos do azeite e emaranhado dos temperos, rompe
a fervura em borbotões, deitam-se os peixes, partidos aos bocados se
são grandes, cozendo breves minutos, o suficiente para se impregnarem
do favor dos condimentos sem, contudo, se desfazerem.
Entretanto, para um alguidar de barro, fatiam-se sopas de pão duro que
hão-de ser o esteio que sustentará o cozinhado. Sem ele nada se faz no
Alentejo. Por isso, o pão de trigo tem que ter a consistência e a
qualidade a que a necessidade obriga. Com o seu sabor, na sua contida
permeabilidade se concentram todos os restantes sabores. Ele dá
verdadeiramente corpo à refeição.
Sobre as suas fatias se deita no alguidar o caldo e toda a temperagem,
excepto os peixes que ficam no mesmo recipiente para não arrefecer nem
levar tombos desnecessários que lhe quebrem a inteireza.
O "caldo", assim dito sem outros apelidos, está pronto. Cheguem-se à
mesa os convidados, de prato em riste e brilho nos olhos.
Os peixes, que se comem a acompanhar as sopas, costumam polvilhar-se
ainda com sal grosso, no próprio momento de se lhes meter o dente.
Ficam bem azeitonas de conserva, verdeais, no compasso da degustação.
Dado o calor ambiental aconselha-se um vinho branco fresco, das Pias,
com um frutado que não ofenda os padrões prescritos nas adegas da
região.
Após tão campestre acepipe, torna-se indispensável a sesta enquanto se
faz o quimo. O Guadiana rejubilará ao ver cumprir-se a tradição.
Aos presentes desejo que possam experimentar o gozo destes prazeres,
primavera adiantada, nas margens do grande rio do Sul desfrutando a
beleza do local e a tentação de prato tão raro. Se não puderem, que
pelo menos o imaginem.
fonte:
João Mário Caldeira
Moura, 13/05/05
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